quinta-feira, 8 de outubro de 2009

RESENHA DO FILME “MADAME SATÔ E DOS TEXTOS “HOMOSSEXUALIDADES BRASILEIRAS” E “ENTRE AS TRAMAS DA SEXUALIDADE BRASILEIRA”





UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
DISCIPLINA GÊNERO E SEXUALIDADE NOS MODOS DE SUBJETIVAÇÃO CONTEMPORÂNEOS
PROFESSOR HENRIQUE CAETANO NARDI
GRADUAÇÃO EM ANÁLISE DE POLÍTICAS PÚBLICAS E SISTEMAS DE SAÚDE


Este ensaio crítico tem por objetivo estabelecer uma relação entre o filme reproduzido em aula “Madame Satã” de Karim Rinouz e os textos de referência “Homossexualidades brasileiras” de Richard Parker e “Entre as tramas da sexualidade brasileira” de Maria Luiza Heiborn, além de uma síntese descritiva e crítica.



“O sindicado, que também diz chamar-se Benedito Emtabajá da Silva, é conhecidíssimo na jurisdição desse Distrito Policial como desordeiro, sendo frequentador costumaz da Lapa e suas imediações. É pederasta passivo, usa sobrancelha raspada e adota atitudes femininas, alterando até a própria voz. Não tem religião alguma. Fuma, joga e é dado ao vício da embriagues. Sua instrução é rudimentar, exprime-se com dificuldade e intercala em sua conversa palavras da gíria do seu ambiente. É de pouca inteligencia. Não gosta do convívio da sociedade por ver que essa o repele, dados seus vícios. É visto sempre entre pederastas, prostitutas, proxenetas (cafetões) e outras pessoas do mais baixo nível social. Ufana-se de possuir economias, mas como não aufere proventos de trabalho digno, só podem ser estas produto de atos repulsivos ou criminosos. Pode-se adiantar que o sindicado já respondeu a vários processos e, sempre que é ouvido em cartório, provoca incidentes e agride mesmo os funcionários da polícia. É um indivíduo de temperamento calculado, propenso ao crime e por todas as razões inteiramente nocivo à sociedade. Rio de Janeiro, Distrito Federal, doze dias do mês de maio do ano de 1932.” (Trecho do Filme “Madame Satã”)



João Francisco do Danúbio Azul conhecido como Madame Satã, mas seu nome verdadeiro é João Francisco dos Santos (Lázaro Ramos), era malandro, artista, transformista, pai adotivo, negro, pobre e homossexual, exímio lutador de Capoeira, nasceu em Pernambuco no início do século XX e viveu na Lapa dos anos 30, onde virou um mito e um símbolo da cultura marginal urbana. Sonhava em ser um grande artista dos palcos. Morava com seus amigos Tabu (Flávio Bruraqui) e Laurita (Marcélia Cartaxo) que tinha uma filha chamada Firmina. Laurita era prostituta, vinda do interior, quando chegou no Rio de Janeiro já estava grávida, foi amparada por João, que adotou sua filha. Tabu é negro, travesti e também se prostitui, cúmplice de João.
João acaba se envolvendo com Renato(Fellipe Marques), tornam-se amantes, mas ao mesmo tempo que o desejo entre ambos fica evidente no filme, no início João demonstra uma certa resistência ao sentimento.
- Sai desse mundo devasso e fedorento – diz João para Renatinho com se sentisse culpa por ser o que é e estivesse pervertendo o rapaz, o expulsa para tentar salvá-lo do mundo que ele mesmo descreve como devasso e fedorento.
Renatinho (Fellipe Marques) seu amante e traidor, certa vez tenta roubar João, mas é pego no flagrante e é expulso pela segunda vez da casa de João.
João demonstra frequentemente sua insatisfação com sua situação perante a sociedade, quer ser aceito e fazer parte dela. Uma noite resolve ir com seus amigos Tabu e Laurita no High Live Club, clube frequentado pela sociedade burguesa carioca dos anos 30, é impedido de entrar porquê lá não podem entrar puta ou vagabundo, acaba se envolvendo em uma briga com os seguranças do lugar. Se esconde da polícia por algum tempo, recebe a visita de Renatinho, seria a última vez que se veriam. Logo é preso, como era reincidente e procurado pela polícia, por um crime que não tinha cometido. Ao sair da cadeia logo descobre que seu amante foi covardemente assassinado com 3 tiros nas costas ao se meter em uma briga de bar, descobre também que em enquanto estava preso, Renatinho ajudará sua amiga Laurita.
Recebe uma proposta de Amador, seu amigo e dono do bar Danúbio Azul, para ajudar no estabelecimento e, principalmente, manter a ordem evitando tumultos na casa, assim a freguesia ficaria vendo que o local é calmo. Consegue convencer-lo a fazer espetáculos no bar, com o falso argumento de que seria uma homenagem a sua amiga Laurita que estaria de aniversário. Devido ao grande sucesso de seu primeiro show no bar Danúbio Azul, começa a fazer espetáculos frequentemente. Após um de seus shows, é insultado por um dos clientes, em primeiro momento parece conseguir conter sua raiva, todavia vai até seu casa, pega seu revólver e mata o sujeito. Por esse crime é condenado a 10 anos de prisão em regime fechado. Quando é posto em liberdade no Carnaval de 1942, desfila no bloco Caçadores de Veados, com a fantasia de Madame Satã, inspirado no filme Madam Satan de Cecil B. De Mille, e ganha o concurso do bloco. Morre no Rio de Janeiro em 12 de abril de 1976 aos 76 anos.
Madame Satã se tornou uma referência da cultura marginal, não só por possuir uma das principais características do povo brasileiro, a malandragem, mas também pela relação que estabelece com o círculo de pessoas que convive, os moradores e frequentadores da Lapa, exercendo um papel de protetor, cuidava para que as prostitutas não fossem vítimas de violência ou estupro. Temos mais de uma referência no filme dessa atuação, como protetor, seja salvando a Laurita de um cliente indesejável ou pela proposta de Amador, que somente sua presença seria suficiente para manter a ordem e evitar brigas no Danúbio Azul. Além disso o fato de ser uma figura contraditória, pois ao mesmo tempo que tem atitudes de protetor em um momento, mostra-se extremamente violento em outros, o que representa uma expressão de insatisfação e revolta com a posição que lhe é atribuída pela sociedade. O que fica evidente com sua atitude violenta após o que lhe disse a Sra. Vitória Aparecida Ximenes dos Santos Cruz, proprietária do Cabaré Lux, onde João trabalhava:
Bem que me avisaram, não confia nesse preto, ele é mais doido do que cachorro raivoso.
Ai! O nêgo ficou maluco?
Sentia uma raiva dentro dele que não sabia explicar (“... uma raiva que não tem fim e que eu não tenho explicação pra ela.”), mas quando estava fazendo um espetáculo sentia uma felicidade extasiante. Essa raiva se expressa nos momentos que sofre algum tipo de preconceito, por sua condição marginal de negro, homossexual e pobre. Enquanto a felicidade está nos momentos em que, dentro do seu ambiente, se sente aceito. Tinha sonho de reformar a sua casa, colocar a menina (filha de Laurita) em um internato de freiras francesas e levá-la para conhecer a China.
De acordo com Parker, a diversidade dos sistemas culturais no Brasil é uma das características da sexualidade do brasileiro. Estes quadros culturais múltiplos expressam não só uma única realidade sexual, mas um conjunto de múltiplas realidades. Existe uma variedade de homossexualidades diferentes, ao invés de uma única e unificada. Tanto no Brasil, como em outros lugares, a sexualidade se expressa dentro de um contexto de poder e dominação. Para entender a homossexualidade masculina no Brasil, é necessário saber que trata-se de um conceito recente como categoria sexual. Diferenciar os conceitos de atividade e passividade dentro do universo da sexualidade: o comportamento masculino padrão e normal que a sociedade impõe tem que ser identificado com a atitude de atividade, enquanto o o comportamento feminino padrão e normal está ligado a passividade. Essa atribuição é fruto de um conjunto de normas intrínsecas na cultura da sociedade, ao invés de uma posição pensada e racionalizada por cada indivíduo. A diferença entre atividade/passividade está diretamente ligada ao comportamento de dominação/submissão e é a mais pura expressão do poder exercido pela classe dominante e machista. Da mesma maneira que se expressa nas relações entre pessoas de sexos opostos, vai se expressar nas relações de pessoas de mesmo sexo, onde se observa que é menos importante o sexo biológico do que os papéis de atividade e passividade exercidos.
Durante o filme podemos identificar as relações de passividade/atividade que são expostas por Parker: na relação de João com seus amigos Tabu, Laurita e seu filha, ele representa a figura paternal na casa, cuida da criança como se fosse dele, é praticamente o marido da Laurita, enquanto Tabu se veste como mulher e se coloca em uma posição de submissão na cena que diz sonhar em ter uma máquina Singer para costurar o uniforme de seu homem e ser sua esposa. Aparentemente na relação de João e Renatinho, dentro dos modelos estabelecidos, se espera que João tenha a atitude passiva (já que João se insinua perguntando se Renatinho queria uma preta de sua altura e pede para que sinta “os coxões da preta”) enquanto Renatinho tenha a atitude de atividade, entretanto os papéis se invertem, como se evidencia em uma cena de sexo entre eles.
É lamentável se dar conta de que após anos de luta pelos direitos a liberdade sexual, que ainda não foram conquistados na sua totalidade, a classe oprimida (homossexual) reproduza os mesmos padrões de relação entre seus indivíduos que eram estabelecidos pela classe opressora, criando uma segmentação e uma desarticulação. Onde um se acha menos bicha do que outro, mais ou menos afetado e que o preconceito e a discriminação continuem sendo disseminados entre aqueles que se dizem contra essas práticas.

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