segunda-feira, 29 de novembro de 2010

ENSAIO CRÍTICO DO DOCUMENTÁRIO “SOLITÁRIO ANÔNIMO” E DO TEXTO “O RESPEITO À AUTONOMIA”



UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
DISCIPLINA DE FILOSOFIA
PROFESSOR LEONARDO PORTO
GRADUAÇÃO EM ANÁLISE DE POLÍTICAS PÚBLICAS E SISTEMAS DE SAÚDE

Este trabalho tem por objetivo estabelecer uma relação entre o documentário “Solitário Anônimo” de Débora Diniz, exibido em aula; e o texto de referência: capítulo 3 – O respeito à autonomia; do livro “Princípios de ética biomédica” de Beauchamp; Tom L. e Childress; James F.
O documentário começa com um idoso deitado em uma cama a espera da morte. No bolso, um bilhete anunciava ser de um lugar distante, sem vínculos de familiares ou amigos, sem documentos ou posses, seu desejo era morrer solitário e anônimo. Esse é o início de um documentário que conta a impressionante história de um homem obstinado a planejar, controlar e ter o respeito ao seu direito de autonomia sobre sua própria morte. É um documentário sobre liberdade, autonomia, a vida a morte.
De acordo com o texto, autonomia vem do grego autos (próprio) e nomos (regra, governo ou lei); inicialmente utilizado pelos gregos para determinar a característica de interdependência de suas cidades-estado, através de uma autogestão ou autogoverno; posteriormente esse conceito se ampliou, contemplando também uma característica dos indivíduos. Adquiriram vários sentidos como o de autogoverno, direitos de liberdade, privacidade, escolha individual, liberdade da vontade, ser o motor do próprio comportamento e pertencer a si mesmo. Portanto não possui um único significado na língua ou na filosofia, mas podemos torná-lo mais específico analisando dentro de uma determinada teoria. Autonomia pessoal refere-se ao indivíduo capaz de tomar suas próprias decisões, enquanto autonomia política trata-se de um governo independente, capaz de definir suas políticas e administrar seu território. A autonomia reduzida está relacionada aqueles indivíduos que não tem o direito de agir de acordo com suas vontades/desejos, por incapacidade mental (doentes mentais, dependentes químicos, etc.) ou institucionalização (presídios ou manicômios).

“Sabemos sobre a sua doença e sua singularidade coisas suficientes, das quais você nem sequer desconfia, para reconhecer que se trata de uma doença; mas desta doença conhecemos o bastante para saber que você não pode exercer sobre ela e em relação a ela nenhum direito. Sua loucura, nossa ciência permite que a chamemos de doença e daí em diante, nós médicos estamos qualificados para intervir e diagnosticar uma loucura que lhe impede de ser um doente como os outros: você então é um doente mental”.
(“A casa dos loucos” – Microfísica do Poder – Foucault, Michel; 1979)

De acordo com Foucault, a prova judiciária era uma maneira de se manipular a verdade. Foram desenvolvidas práticas para se determinar a culpa ou inocência do indivíduo, o ordálio ou Juizo de Deus é uma dessas ferramentas de obtenção da verdade. Quando o indivíduo estava em investigação, era submetido a provas dolorosas como a do ferro em brasa, aqueciam o ferro e o acusado era obrigado a segurar, após a conclusão dessa prova, caso não houvesse ferimento ou se o ferimento era rapidamente curado, o acusado era considerado inocente. Partindo da premissa de que os inocentes seriam protegidos por Deus através de um milagre. Nessa perspectiva a verdade era produzida por rituais – estratégia e não método. A relação de poder que se estabelecia era de controle/dominação do indivíduo, submissão ao ordálio e obtenção da verdade. Começa na história da confissão na ordem da penitência, da justiça criminal e da psiquiatria que se estabelece um uma poderosa ferramenta capaz de determinar a verdade, perceber e definir negativamente a doença, o crime e a loucura.
O hospital transforma-se em um lugar de acolhimento da doença e sua observação sistemática para produção do conhecimento. O médico ou “mestre da loucura” tem o poder de fazer a verdade se manifestar quando ela se esconde, Através de procedimentos com o isolamento, interrogatório, tratamentos-punição (duchas com água fria para abrandar a loucura). Detentor do conhecimento e da verdade em relação à saúde e a doença, o chamado biopoder, ao passo que proporciona ao médico a autonomia de determinar a verdade sobre as condições do paciente, reduz a autonomia desse paciente, que por estar internado passa a ser um cidadão sem direitos, submetido ao julgamento e procedimentos da equipe médica, que pode fazer dele o que bem entender, sem a possibilidade de apelo.
Quase todas as teorias sobre autonomia contemplam duas características básicas:
1. A liberdade que é a faculdade de cada um se decidir ou agir segundo a própria determinação;
2. A qualidade de agente que é a capacidade de agir de acordo com sua vontade e desejo.
Existe uma reflexão em relação aos diversos significados dessas duas condições e se existe alguma outra condição necessária para determinar as decisões autônomas.
No documentário, o homem chega ao hospital por causa de uma determinação judicial, cabe a equipe médica fazer todos os procedimentos necessários para salvar a sua vida, independente de seu desejo de morte. A justiça não respeita o direito de autonomia e a máquina hospitalar de cura coloca em prática suas ferramentas de tratamento. O objetivo é salvar a vida daquele homem que ninguém tem idéia de quem é ou sabe o seu grau de instrução ou suas raízes familiares, desde o início ele luta contra os procedimentos médicos que lhe privam de sua liberdade de decisão. Em nenhum momento é feito algum tipo de avaliação sobre sua capacidade mental para agir de acordo com sua vontade própria.
O texto mostra os traços da pessoa autônoma que contempla a capacidade de autogoverno, compreensão, raciocínio, deliberação e escolha independente. A escolha autônoma não se trata da capacidade de governar, mas do ato efetivo de governar, e tomar as suas decisões baseadas em uma escolha racional.
A escolha racional está baseada em optar por uma decisão em deferência aquilo que é melhor para o indivíduo, independente da força dos seus desejos. O Solitário Anônimo mostra o desejo de morrer de um individuo, baseado em suas crenças, convicções e experiências de vida, em nenhum momento é comprovada algum tipo de patologia mental que comprovasse que sua incapacidade de escolha racional estivesse comprometida. Partiram do pré-suposto que uma pessoa que possui o desejo de morrer só pode estar acometida de algum distúrbio mental como a depressão ou até mesmo que lhe faltava o conhecimento necessário para tomar tal decisão (ignorância). Ao longo do documentário, se evidencia o grau de instrução do homem, que tem nível superior, é pós-graduado, sabe falar cinco idiomas diferentes, é profundo conhecedor da legislação, de seus direitos como cidadão e tem noção da sua liberdade de autonomia.
Segundo Beuchamp e Childress; o direito à autonomia deve ser respeitado mesmo que o indivíduo não tenha uma reflexão em um nível mais elevado quanto a suas preferências. Se a reflexão em um nível mais elevado pode ser mensurada pelo grau de escolaridade e de conhecimento, fica evidente que aquele indivíduo tinha plena autonomia quanto a sua escolha de morte. Partindo dessa premissa quem não teve uma reflexão mais profunda em relação à decisão de salvar a vida do homem foi, primeiramente, o judiciário e, posteriormente a instituição hospitalar, que mesmo antes de saber quem era aquele homem e se ele tinha capacidade para uma escolha racional decidiu privá-lo de seus direitos e não respeitar a sua autonomia.

“Autonomia: o pensar sobre si. Autonomia é mais do que um poder de decisão. Autonomia é saber conviver com a própria liberdade para assumir posturas que não necessariamente afetem o convívio social. Acredito, pois, que o contraponto seja justamente este; como ser autônomos enquanto dependemos e estamos sujeitos a uma interação social? Como saber o modo e até que ponto nossas decisões não devem afetar o mundo em nosso entorno? Autonomia é saber começar... É saber parar... autonomia é saber recomeçar. Para qualquer uma dessas ações somos instigados a refletir sobre os possíveis efeitos que resultaram da nossa tomada de decisão. Autonomia é, sobretudo, assumir e sustentar as convicções e crenças que temos, mesmo quando estas não são moralmente aceitas na sociedade na qual estamos inseridos”
(Huander Felipe Andreolla – Biomédico, Mestrando da UFRGS e Acadêmico do curso de Análise de Políticas e Sistemas de Saúde)

Acerca da reflexão do colega, acredito que independente do resultado que as decisões pessoais possam geral no ambiente social em que vivemos, para ter autonomia temos que manter nossas convicções e crenças, mesmo quando não são moralmente aceitas no ambiente em que estamos inseridos, pois nossas escolhas são baseadas em nosso conhecimento e experiências de vida, e dependendo do contexto social em que estivermos inseridos podem ser avaliadas de formas diferentes.

“as ações autônomas não devem ser sujeitadas a pressões controladoras de outros” (BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F.; 2002)

Nossas ações e escolhas são baseadas em nossa cultura que está baseada em nossas crenças, valores morais, religião, etc. Alguns costumes/tradições religiosas ou sociais estão tão intrínsecas em nosso cotidiano que, às vezes, se torna quase que impossível identificá-las. Algumas posição e opiniões são pré-estabelecidas e incorporadas na rotina do indivíduo social, o que muitas vezes não nos permite reavaliar certos valores, crenças ou hábitos. Agimos no automático, entretanto o mundo, os indivíduos e suas relações estão em constante transformação. Partindo da premissa que tudo está em constante transformação, para que eu possa ter uma decisão autônoma, deveríamos evitar ao máximo estabelecer conceitos e opiniões universais e constantes para todas as coisas e se permitir reavaliar constantemente nossos valores, crenças e decisões, permitindo que cada decisão seja adequada a nossa vontade levando em consideração o contexto em que estamos inseridos e a época que estamos vivendo.

REFERÊNCIAS:
1. Princípios de ética biomédica – “O respeito à autonomia” – BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F.; Edições Loyola, São Paulo, 2002.
2. “Solitário Anônimo” – Diniz, Débora; 2007 – 18 min.
3. Microfísica do Poder – “A casa dos loucos” – FOUCAULT, Michel. Edições Graal Ltda, São Paulo; 1979.